
Foram apenas 24 horas. Mas foram às 24 horas mais lentas de toda minha vida, porque até então, ainda estava vivo. Mas minha hora de voltar havia chegado; o momento no qual mais esperei durante meu período no Plano Espiritual, meu ferimento à essa altura já estava começando a ferver, a dor me consumia a cada segundo que passava mas minha determinação em retornar para Terra me fazia ignorá-la. Já não importa mais como voltarei e o que terei de fazer. Estou disposto a tudo, nem que para isso eu tenha que voltar mais cedo para cá. A morte é forte, mas ainda não morri. Ícaro estava ao meu lado andando pelos corredores do hospital me conduzindo até o lugar para onde eu realizaria meu desejo, no caminho, procurei pensar em tudo que havia visto e escutado. Apesar de não ter absorvido tudo da maneira certa, aprendi muito aqui. Aprendi que não podemos fazer tudo, mas posso fazer tudo que eu puder. Aprendi que seres humanos são medíocres, mas o quanto são valiosos aqueles que me mostram o contrário e o quanto são importantes para mim. Sacrifícios nunca são em vão, na verdade, é o mais próximo que podemos chegar de um Deus. Não existe nada mais abençoado do que a vida, ela pode ser dura, mas eu sou mais. Milagre não é ver o impossível acontecer diante de seus olhos, é poder ver tudo que é possível ser posto em prática e ainda sim, se contentar com um fracasso.
E enfim chegamos em meu destino final. Era o lugar onde eu havia chego e estava exatamente da mesma forma. Os mesmos papéis jogados nas ruas, os mesmos carros destruídos, inclusive aquele onde Ícaro surgiu pela primeira vez.
- Muito bem Vincent, chegou a hora. – Disse Ícaro parando em frente à mim.
- Estou pronto. – Respondi olhando em seus olhos.
- É realmente isto o que quer? – Indagou mais uma vez.
- Sim. – Mantive meu olhar.
- Pense bem, lembre-se de que você tem um preço a pagar pela escolha que tomou. – Advertiu Ícaro.
- Tenho motivos suficientes pra retornar, e além do mais, voltarei para cá um dia. – Respondi decidido.
- Que assim seja. Mas diga-me Vincent, apenas uma última pergunta: o que o faz querer voltar? O que o motiva a recusar o descanso eterno para ter de volta um lugar tão imundo no qual você aparentemente não fazia a menor questão de estar.
- Minha vida. Não há nada que eu não valorize mais, a única coisa na qual possuo.
- Vindo de alguém que praticava um lento suicídio todos os dias chega a ser surpreendente.
- Uma coisa é você não valorizar sua vida, outra é como cuida de seu corpo. Quando eu morrer minha carcaça não passará de comida de vermes. Não perderei meu tempo cuidando do que está por fora e sim do que tenho por dentro.
- Então você teme a morte? – Disse Ícaro se afastando e dando alguns passos para os lados.
- Não a temo, apenas não quero vê-la tão cedo.
- Você a teme sim. - Afirmou.
- Como está tão convicto disso? - Indaguei.
- Eu sinto isso em você. - Respondeu Ícaro parando em minha frente mais uma vez.
- E o que isso quer dizer? - O encarei.
- Quer dizer que você provavelmente não irá gostar do que verá daqui a um instante.
- Como assim? – Após minha pergunta, uma névoa negra começou a surgir em torno de Ícaro cobrindo-o por completo. Aos poucos a fumaça junto com Ícaro foram desaparecendo surgindo à mesma criatura que havia me atacado quando cheguei aqui. – Você... Você é aquela criatura! – Afirmei espantado ao ver aquele monstro.
- Sim Vincent, eu o ataquei quando chegou aqui. Peço desculpas, não havia o menor conhecimento de quem você era, até ver o crucifixo de sua mãe. – Disse ele vindo em minha direção.
- O que você é? – Indaguei a ele ainda sem reações.
- Sou um Ceifador Vincent, às vezes alguns espíritos de outros círculos acabam vindo para cá e é minha obrigação mandá-los de volta. E este será o seu trabalho em breve.
- O.... Meu?! – Arregalei meus olhos.
- Sim, este é o preço pela sua decisão.
- Como você se tornou isso?
- Você não é o único que não valorizava seu corpo Vincent. E nem foi o primeiro a parar aqui por causa de um acidente. A diferença é que eu era o condutor do carro quando bati em um poste de uma rodovia alemã. E claro, escolhi ficar aqui.
- Mas se escolheu ficar, por que se tornou esta criatura?
- Por que esse é o preço para quem tem o privilégio de escolher entre ficar e voltar Vincent. Sua ferida irá se curar, mas, carregará para sempre esta chaga, até que o próximo bem aventurado surja em seu caminho. Ainda sim, quer voltar e aceitar seu destino?
- Sim. – Respondi sem hesitar, perdendo qualquer medo que ainda habitava em mim.
- Pois bem, me dê seu crucifixo. – Disse ele estendendo sua mão.
- Aqui está. – Retirei o amuleto do meu pescoço e o entreguei. – Entregue isto à mamãe e diga ela que vou querer de volta.
- Vou dizer.
- Obrigado Ícaro, por tudo.
- Não precisa agradecer jovem jornalista. Agora você tem que ir, quando acordar, tudo não passará de um sonho. – Explicou Ícaro amarrando o crucifixo em sua foice. – E lembre-se Vincent, você nunca está sozinho.
- Nunca esquecerei. – No instante seguinte, Ícaro me golpeou com sua foice e uma forte luz branca surgiu em meus olhos.
Quando acordei, estava sendo iluminado pela luz do quarto onde meu corpo estava. Minha visão se clareou aos poucos, quando notei Helena e Barbara ao meu lado, em prantos, mas com um imenso sorriso em seus rostos.
- Isso é um milagre! – Disse Helena pulando na cama e me abraçando.
- Não há outra explicação! – Respondeu Barbara saltando para me abraçar do outro lado da cama.
- Tudo bem, eu ainda estou vivo, mas não por muito tempo desse jeito! Tem o suficiente de mim para vocês duas aqui. – Todos começamos a rir e ficamos alguns minutos dessa forma enquanto eu me recuperava totalmente. – Vocês não vão acreditar no sonho que eu tive!
- Certo, agora descanse e depois você conta para nós este sonho. Agora que você está bem, terá alta amanhã. – Disse Barbara, acariciando meu rosto.
- Só amanhã?! - Perguntei inconformado.
- Isso mesmo, agora fique quieto e descanse. – Ordenou Barbara
- Está bem, mas depois podemos sair para comer alguma coisa? - Sugeri
- Naquela sua cafeteria favorita por exemplo? – Perguntou Helena.
- É por isso que eu te amo sabia?
- Você não me ama, você deve estar querendo transar comigo!
- Juro que não. – Menti, mas disfarcei rindo.
No dia seguinte, após acordar me dirigi ao banheiro e lavei meu rosto, escovei meus dentes como de costume e desci encontrando Barbara arrumando a mesa para o café.
- Bom dia flor do dia! – Brincou Barbara.
- Bom dia pra você também Barbara. – Respondi sorrindo, mas, um pouco entorpecido pelo sono.
- Acordou bem na hora do café da manhã, como sempre. – Sentou-se Barbara.
- O cheiro das panquecas sempre me acorda! – Me sentei ao seu lado.
- Fico feliz em saber que você gosta das minhas panquecas! Enfim, sirva-se à vontade.
- Muito obrigado, madrasta!
- Seu acidente mexeu mesmo com você, até parou de me ver como uma bruxa má. – Disse Barbara surpresa e servindo-se.
- Eu descobri que você não matou a Branca de Neve e nem envenenou a Bela Adormecida. – Brinquei também me servindo.
- Você está bem mesmo? Não quer que eu faça um chá para você ou lhe dê algum remédio para dor de cabeça? – Disse Barbara ainda surpresa colocando as costas de sua mão em minha testa e em minhas bochechas, procurando algum sinal de febre.
- Estou perfeitamente bem! Mas andei pensando em algumas coisas e percebi que estou sendo muito injusto com você Barbara!
- Ao que se refere?
- Ao modo que sempre a tratei desde que a conheço.
- Confesso que nunca esperei ouvir isso, achava que para você eu era alguma terrorista ou Usurpadora!
- Na verdade, vou enxergá-la com outros olhos. Você jamais vai substituir minha mãe, mas tudo que tem feito por mim e pelo meu pai é digno de alguém que merece ser chamada de mãe.
- Minha intenção nunca foi substituí-la Vincent, mas me esforço todos os dias para chegar o mais perto possível dela. Fico muito feliz em saber que você me deu essa chance.
- Desculpe Barbara, você jamais chegará perto da minha mãe, assim como ela nunca chegará a se comparar a você. São coisas totalmente opostas, mas se não fosse você acho que passaria fome todos os dias de manhã, não por opção, e sim por obrigação. Entre tantas outras coisas que você faz.
- Então, agora somos amigos? – Perguntou ela sorrindo.
- Mais do que isso, somos exemplos de relações intraespecíficas positivas! – Respondi retribuindo o sorriso.
- Começou! Vamos comer logo antes que eu fique com dor de cabeça com essa sua língua totalmente desconhecida pela humanidade. – Encerrou Barbara pegando uma torrada junto com um pote de manteiga.
- Como todo prazer! – Terminei pegando uma panqueca e servindo suco de laranja em meu copo.
No fim daquele dia, Helena e eu fomos esvaziar nossos armários e pelo visto, éramos os últimos a recolher todos os livros de três anos de estudo.
- Enfim, acabou. – Disse a ela enquanto colocava meus livros dentro de uma caixa.
- Pois é esses três anos passaram como 3 segundos. – Respondeu Helena fazendo o mesmo.
- Não sei como você me agüentou durante três anos, confesse: eu nunca te enchi o saco? – Indaguei colocando meu último livro na caixa.
- Está brincando? Você me enchia o saco todo dia! – Exclamou Helena, colocando em uma nécessaire alguns cosméticos que guardava em seu armário quando uma foto caiu de dentro dele.
- E o que é isso? – Disse pegando a fotografia. – Não acredito! – Exclamei espantado com o que estava vendo.
- Hei! Quem disse que era para você ver isso?! – Respondeu Helena, vermelha de vergonha.
- A nossa primeira foto juntos e... Olha só, uma dedicatória no verso! – Virei a imagem e comecei a ler o que estava escrito: “As pessoas acreditam que vão viajar para o verão, mas você e eu vivemos e morremos. O mundo está girando e não sabemos por quê.”
Oasis, Champagne Supernova. Que por acaso, foi a música que mostrei a você no dia em que nos conhecemos.
- É sim, agora me dá isso aqui! – Disse Helena tomando a foto de minhas mãos.
- Eu não sabia que você guardava isso ainda. – Disse a ela encostando-me nos armários a observando.
- Tem muita coisa que você não sabe seu troca letras desgraçado! Mas, me diga, vai mesmo querer ser um jornalista? – Disfarçou Helena.
- Você não tinha uma desculpa melhor estilista de brechó? – Sorri.
- Desculpa para quê? – Disse Helena me encarando.
- Desculpa para disfarçar o que eu e você escondemos um do outro nesses três anos. – Fiquei de frente para ela me apoiando com um dos braços no armário a encostando no mesmo.
- E o que escondemos um do outro todo esse tempo? – Perguntou Helena olhando em meus olhos.
- O fato de que você é louca por mim e que sou apaixonado por você desde a primeira vez que a vi entrando na sala de aula e se sentando ao meu lado. – Correspondi ao seu olhar.
- E como se sente? – Perguntou mordendo seus lábios.
- Que já esperei demais para fazer isso. – Disse passando minha boca pelo seu rosto.
- Então faça. – E eu a beijei. Quando senti o toque de seus lábios pela primeira vez foi como se tudo ao meu redor tivesse deixado de existir. Tudo que eu podia ver era Helena. E naquele momento, havia encontrado algo no qual, valia à pena viver - Vincent. – Disse Helena parando o beijo e me encarando.
- Helena. – Respondi acariciando seu rosto.
- Eu te amo. – Isso soou como uma punhalada no coração, mas eu não sentia dor alguma.
- Eu também te amo. – Respondi a abraçando. – E aquela história sobre transar, foi pra valer? – Brinquei.
- Daqui a 2 anos quem sabe, seu safado! – Respondeu Helena me estapeando e rindo.
- A propósito, lembra que eu ia te contar sobre meu sonho?
- Lembro sim, me conte tudo! Em detalhes.
- Foi à coisa mais louca! Eu tinha acordado em uma cidade deserta, aí um ceifador veio atrás de mim e depois ele virou um cara com um terno preto muito estiloso e começou a me explicar tudo sobre o lugar e eu vi a minha mãe! A gente conversou muito sobre tudo, até falei de você para ela...
E desde então, se passaram 20 anos desde meu acidente. Me tornei um jornalista e Helena virou uma brilhante estilista com uma marca e várias coleções próprias! E também nos casamos. Barbara e eu nos tornamos ótimos amigos, aprendi a enxergá-la com outros olhos assim como nunca mais cheguei perto de qualquer droga. A não ser a tão tradicional Vodka, mas só uma vez por semana no fim de um expediente. Vivi muito bem até completar 37 anos quando descobri um tumor cerebral que me tirou a vida. E como já era certo, retornei para o Círculo Um, mas dessa vez para ficar. Onde fui recebido por Ícaro e minha mãe, já pronto para começar meu novo trabalho.
Foram anos e anos guardando o Círculo Um, vi toda minha família se reunir comigo, todos da forma em que desejavam estar. Helena estava como eu, Barbara e papai estavam mais velhos. E assim vivi minha eternidade até um dia quando surgiu um espírito diferente. Ele havia saído de dentro do hospital e estava com um ferimento em seu peito causado por uma bala vinda de uma arma de fogo. Estava prestes a atacá-lo transformado em Ceifador quando notei que ele portava um crucifixo diferente do meu. Então fui para trás de um carro, tomei minha forma humana e me sentei no capô do automóvel eobservando o rapaz.
- Você é novo por aqui e se saiu muito bem! – Exclamei olhando-o se levantar.
- Quem é você? Que lugar é esse? O que era aquilo? – Disse se levantando e me encarando.
- São muitas perguntas, mas explicam o porquê de você ser um jornalista! – Disse para ele rindo.
- Quer parar de rir de mim e responder o que perguntei? – Respondeu impaciente.
- Tudo em seu tempo jornalista! Meu nome é Vincent e este lugar bom, você que é um grande entendedor da literatura, podemos dizer que é como os Campos Elíseos da Divina Comédia de Dante Alighieri.
- Campos Elíseos? Aquilo queria me matar e você chama isso aqui de paraíso?! – Indagou assustado.
- Te matar? Você já está morto! – Parou por um instante, arregalou seus olhos e parece que dessa vez, a ficha acabara de cair.
