Eu estava morto, era um fato que eu deveria aceitar. Mas cada vestígio mental que ainda me restava simplesmente se recusava a acreditar nisso. Imediatamente após as palavras de Ícaro, as imagens do acidente que me tirou a vida passaram pelos meus olhos. Dei alguns passos em direção a um carro e olhei meu reflexo pelo vidro dianteiro onde notei que eu possuía um profundo corte na minha testa. Passei uma das mãos pelo ferimento e senti uma aguda dor.- Tudo está claro agora não é? – Disse Ícaro se aproximando de mim e ficando ao meu lado.
- Foi tudo tão... Rápido. – Respondi, encarando meu próprio reflexo. – Eu não posso estar morto, só tenho 17 anos! Como isso pôde acontecer?!
- Você poderia ter até mesmo 50 anos, quando à sua hora chega, nada impede as coisas de acontecerem Vincent. – Explicou Ícaro.
- Que lugar é esse? – Indaguei desviando meu olhar para Ícaro.
- Como eu disse, estamos em uma dimensão que se assemelha aos Campos Elíseos, chamada de Zero. Aqui é o lugar para onde vão aqueles que foram mortos em acidentes, você teve muita sorte de vir parar aqui. Venha, vou lhe explicar. – Ícaro pôs uma das mãos em um dos meus ombros e começamos a andar pela cidade.
- Eu poderia ter ido parar em um lugar, pior? – Indaguei.
- Zero é o primeiro dos cinco vales por onde os mortos podem ir, o que define para onde eles vão são suas ações na Terra. E são eles Zero, Um, Dois, Três, Quatro e Cinco. O vale Um é para onde vão os suicidas, Dois os viciados, Três os corruptos, Quatro os assassinos e Cinco o último e pior de todos, é para onde vão os estupradores e pedófilos. Estive observando você alguns meses antes de sua morte e você era um cara bem perturbado Vincent. Confesso que me impressionei devido ao vale que você veio parar e no lugar onde você parou nele. Eu estava certo de que você iria para o vale Um ou Dois.
- Um ou Dois? Não entendo, eu nunca tentei suicídio em toda minha vida! E também não tenho nenhum vício. – Exclamei.
- Nunca tentou se matar porque você já estava morto Vincent, morto por dentro. A única coisa que mantinha sua alma na Terra era o seu corpo, coisa que você não andava cuidando muito bem. Ou por acaso já se esqueceu do álcool e das drogas, isso é considerado suicídio, uma lenta e dolorosa morte. – Continuou Ícaro com sua explicação.
- Certo, se meu propósito em Terra terminou, qual é o meu aqui? – Indaguei.
- Isso é algo que terá de descobrir sozinho jovem jornalista. Sem mais perguntas, agora preciso ir. – Disse Ícaro afastando-se de mim.
- Ícaro espere! Eu não posso ficar aqui, tenho muitas coisas ainda para fazer em Terra e Barbara e Helena sentirão minha falta. Não há um jeito de voltar?
- Ora Vincent, para que voltar? Olhe a sua volta, todos que estão aqui são privilegiados. Está vendo este Sol que nos ilumina? Ele é o sinal de toda a esperança e prosperidade deste lugar. – Encerrou Ícaro.
- Então há como voltar. – Concluí.
- Eu não disse isso.
- Mas quis dizer, eu posso ser um privilegiado, mas não escolhi estar aqui. E pelo que sei, nem mesmo a vontade do destino pode intervir em meu livre arbítrio.
- Perfeitamente. Entretanto, você também não escolheu ser atropelado e isto não depende da sua vontade.
- Correção: a vontade dos outros não corresponde a mim. Lembro muito bem que o farol estava vermelho para o trânsito no momento do acidente, portanto não foi um erro meu.
- Tudo que fizer em Terra irá influenciar em todos à sua volta. Assim como o motorista que o atropelou. Ele escolheu infringir as leis de trânsito e como consequência, você veio parar aqui.
- Por isso mesmo, das coisas que fiz em Terra, não era para eu estar aqui.
- Claro que não, era para estar em outro vale. Se quiser pode ir para algum deles, mas garanto-lhe que não são como o Zero.
- Eu não estou dizendo que quero ir para outro vale. E sim que quero voltar para Terra.
- O vale Zero, possui este nome porque é onde aqueles que foram bons no plano físico, podem recomeçar, mas aqui.
- Eu quero voltar.
- Persistente, curioso, inteligente. Um perfeito jornalista; você seria brilhante em sua profissão garoto. Pois bem, é isso mesmo o que quer? – Indagou de forma intrigada Ícaro.
- Sim.
- Mas terá um preço.
- E qual é?
- Nada se consegue sem merecimento e sacrifício Vincent. Até lá, o quarto onde despertou será sua casa. Em breve nos veremos de novo.
- Isto aqui por acaso é o Céu? – Perguntei.
- Não existem Céu e Inferno garoto, e sim a eternidade. – Respondeu Ícaro desaparecendo.
Enquanto retornava ao hospital fui refletindo sobre tudo que Ícaro havia me dito, no fundo, eu queria voltar, eu precisava. Mas se estou aqui não é por acaso. Chegando ao hospital, me sentei em um degrau da escada na entrada principal. Retirei o bilhete do meu bolso e o encarei por um instante quando de repente, várias pessoas começaram a transitar pelas ruas. O Sol estava mais radiante do que nunca e pela primeira vez, eu não estava sozinho.
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